Ao comentar que meu primeiro curso (que quase terminei) de graduação foi Filosofia é comum observar reações divertidas em meus interlocutores: alguns esbugalham os olhos, outros dizem que isto “justifica o fato de eu ser louco assim”, muitos riem e a esmagadora maioria me diz que está surpresa com o fato de eu ter terminado em uma área tão diferente (Ciência da Computação).
Aguardei muito tempo para escrever este post, no entanto após ouvir este podcast (entre 20:15 a 22:40) com Neil deGrasse Tyson sobre Filosofia o teclado me sequestrou. Basicamente o que nosso astrofísico popstar e seu host sem noção dizem é o seguinte:
- Os filósofos questionam em excesso.
- O filósofo acredita que está fazendo perguntas profundas sobre a Natureza mas na prática está falando besteira.
- Filosofia não tem progressos e que na realidade pode ser vista como uma traso para a ciência.
- Que os questionamentos são ridículos mas que não são problema pois não há quem os ouça (esta doeu).
Se Neil de Grasse fosse um ninguém não teria importância alguma o que foi dito, mas por ser um importantíssimo e extremamente popular divulgador da ciência e, portanto, um formador de opinião forte, alguém tem de se manifestar (e não estou sozinho).
O que é Filosofia afinal?
Você vai a uma livraria e pega diversos manuais introdutórios à Filosofia: todos terão esta pergunta: “o que é Filosofia?”. E todos irão responder “Você vai a uma livraria e pega diversos manuais introdutórios à Filosofia: todos terão esta pergunta: “o que é Filosofia?””.
É um loop que ao desavisado pode dar a impressão de completa perda de tempo: “nem os filósofos sabem o que é Filosofia!” mas que expõe a essência filosófica. O agir filosófico é o agir questionador que busca as melhores definições acerca do seu objeto de estudo. É um questionar essencialmente polemizante: quando pergunto a um sapateiro o que é um sapato se este não me fornece uma definição satisfatória daquele objeto abalo seu status quo, o faço questionar-se a si mesmo e seu ganha pão.
Quando lemos Platão ou qualquer outro filósofo vêmos de forma clara emergir a mais simples e terrível (na minha opinião) das perguntas: o quê é isto? E a partir da primeira tentativa de resposta inicia-se um diálogo em que, caso seus participantes realmente estejam interessados em resolver o problema, isto é, chegar à melhor definição do objeto tratado, inúmeros outros questionamentos virão à tona em um ciclo que jamais chegará ao fim, exatamente como a ciência.
Mais que a busca pelo significado, o ato filosófico é polemizador. Estou pondo em dúvida o senso comum: a definição que tenho do sapato dada a mim pelo sapateiro é de fato a mais apropriada? Estaria o sapateiro errado? EU estaria errado? A sociedade estaria acreditando dizer uma coisa quando na realidade diz outra? O que de fato tenho em meus pés???
Este fator polemizante da Filosofia na minha opinião é o que a torna tão impopular e lhe fornece este aspecto arrogante e desagradável. Convenhamos, o filósofo pode ser visto como um chato: o sapateiro sabe o que é um sapato. Lida com isto o dia inteiro, o que o questionar sobre a definição do termo pode agregar a mais? Melhores sapatos: uma melhor compreensão a respeito de sua essência e portanto uma fabricação e produtos otimizados. O problema é que o sapateiro teria de mudar seu modo de agir. Aí complica né?
Na minha opinião o ano em que a melhor definição da Filosofia emerge é 1921 quando Wittgenstein publica o Tractactus Logico-Philosophicus. Este livro de 90 páginas (pode ser lido gratuitamente em inglês e alemão aqui) tinha por objetivo resolver todos os problemas filosóficos (arrogância extrema) que, para Wittgenstein, eram o resultado da má compreensão da linguagem. O papel do filósofo seria portanto o de compreender melhor como a linguagem funciona: o que pode ou não ser dito. De novo: o filósofo buscando melhores significados aprofundando-se na sua ferramenta essencial que é a linguagem.
Alguns anos depois Wittgenstein irá além ao descrever o papel do filósofo. É o sujeito que levanta as questões, e a ciência que se vire para resolvê-las.
Há também aquela definição etimológica da filosofia como “amor à sabedoria” mas, sinceramente, prefiro ver o filósofo como Wittgenstein o retratou. Aquele que busca a essência através do real significado das palavras e com isto gera o desconforto que de uma forma ou outra acabará nos empurrando em novas direções.
Voltando ao nosso amigo deGrasse
É comum a postura arrogante da ciência em relação à Filosofia. Afinal de contas vêmos o progresso desta de forma nítida: cada vez sabemos mais a respeito das coisas, temos computadores melhores, etc. É feita a seguinte afirmação: “o filósofo está sempre fazendo as mesmas perguntas”.
É verdade, mas o mesmo pode ser dito a respeito da ciência. Peguemos, por exemplo, a especialidade de deGrasse: astrofísica. Estão tentando responder o mesmo questionamento há milênios: qual a origem do Universo? E ei: não pense que este desenvolver é acumulativo. De tempos em tempos há um reboot (e portanto retrocesso), tal como já escrevi a respeito aqui quando falei sobre o “Estrutura das Revoluções Científicas” escrito por Thomas Kuhn. Então o primeiro argumento foi vencido fácil: como podem ver a ciência se comporta exatamente da mesma maneira.
Um outro argumento comumente usado é o de que a Filosofia não produz resultados palpáveis. Que não há resultados na vida prática. O interessante deste argumento é que ele é essencialmente filosófico também, inclusive é o nome de uma escola filosófica chamada pragmatismo. Segundo esta doutrina o sentido de uma idéia se deduz a partir dos seus resultados práticos. Te parece similar a alguma coisa? Sim: à ciência, de novo, agindo de forma… essencialmente filosófica.
E aí nós avaliamos o modo como um cientista trabalha o seu conhecimento. Vêmos que há a categorização sempre. Pense nos planetas, por exemplo: eles se dividem em diversas categorias, cada uma das quais com suas subcategorias, e por aí vai até que se chega a uma boa categorização das coisas (quem começa com esta história de categorizar o mundo é inclusive um filósofo sabe… chamado Aristóteles). O que o cientista está fazendo nesta classificação? Ele está definindo: está respondendo “o que é isto?”. Em suma: está filosofando, e se a definição a que chegar for diferente da corrente sabem o que ele causou? Polêmica.
Tem um trecho desta entrevista com deGrasse que achei particularmente interessante: vou traduzi-lo abaixo:
“Se o filósofo se preocupa com o som do bater de palmas com uma mão só: é uma perda de tempo.”
Esta é uma afirmação intelectualmente desonesta pois ignora o fato de que há pesquisa científica tão inútil (se é que este questionamento de fato o é). Basta nos lembrarmos do Darwin Awards. Generalizar a qualidade de todo um campo do conhecimento com base em uma minoria incompetente não é intelectualmente honesto.
E logo em seguida há mais um trecho particularmente fascinante:
O cientista vira para o filósofo e diz: “Olha, eu tenho um mundo todo desconhecido lá fora. Estou te deixando pra trás e seguindo em frente. Você não consegue sequer cruzar a rua por que está distraído com questões que acredita serem profundas.”
O bacana é que neste trecho Neil deGrasse expõe exatamente o comportamento que os cientistas conservadores apresentam diante das revoluções científicas que mudam seus paradigmas correntes. Com certeza Nicolau Copérnico escutou frases assim de alguém: “olha Copérnico: eu tenho um monte de estudos pra fazer agora, não tenho tempo a perder com você e esta teoria de que o Sol e não a Terra está no centro tá. Vou te deixar pra trás neste momento e me focar no modo como o Sol gira ao nosso redor”.
Mas Copernico era um cientista, certo? Mais que isto: ele estava buscando a essência por trás do movimento dos corpos. Como é o funcionamento dos corpos celestes? O que é? Copernico antes de mais nada estava agindo filosóficamente.
É interessante ver como nosso amigo deGrasse, que em seus programas de TV fica nos expondo a definição de diversos assuntos filosóficos e dizendo que conhecemos as coisas a partir dos seus efeitos ao dizer estas bobagens sobre a Filosofia acaba se mostrando um filósofo pragmático. Não dá pra fugir da própria sombra.
Enquanto o filósofo filosofa o físico está lançando foguetes e…
Como alguém que fez Filosofia e desenvolve sistemas para projetos aeroespaciais acredito que eu esteja em uma posição única para tratar este questionamento com o qual topei recentemente no Facebook (que provávelmente foi inspirado na ignorância de deGrasse). Sou um cientista da computação, mas o ato de projetar sistemas é essencialmente o ato de responder a pergunta primordial: “o que é isto?”.
Quando você projeta uma classe em seu código, por exemplo, a classe Pessoa você se questiona a respeito de quais atributos compõem uma pessoa. O que torna um registro no banco de dados uma boa representação de uma pessoa? Quando você pensa arquiteturalmente no sistema, a primeira pergunta é: o que isto deve fazer? O que é este sistema? Qual o seu objetivo? Você busca definições. E claro, há as polêmicas que se manifestam sob a forma dos questionamentos da sua equipe.
Então não foi uma mudança brusca sair da Filosofia e ir para a Ciência da Computação. A diferença foi o ferramental usado na materialização dos conceitos. Na primeira era a palavra, na segunda o computador.
No meu caso o filósofo filosofa e me ajuda a saber para onde devo ir: ele me diz o quê o cientista da computação deve construir. Não tem como chegar a algo sem saber do que se trata, certo?
Concluindo
Muitos tem a visão de que o filósofo é um sujeito isolado que tira idéias da cabeça e fica postando em blogs com o objetivo de conseguir cliques e polemizar por nada. Mentira: temos aí quase 3000 anos de tradição na qual foi desenvolvida metodologia, avanços foram feitos e incontáveis produtos gerados, dentre estes a sociedade ocidental da qual fazemos parte (não foi um cientista em laboratório que a gerou).
O filósofo não é um ser isolado, pelo contrário: está no nosso dia a dia sem que nos dêmos conta disto. Questionou e gerou uma discussão? Você está filosofando, não precisa fazer um curso de Filosofia na faculadade (aliás, o curso de Filosofia na realidade não ensina a “filosofar”, mas sim apresenta a história da Filosofia).
A pergunta que fica é: esta visão borrada da Filosofia não seria a manifestação do medo que temos de nossas bases estarem erradas, talvez por estarmos bitolados demais pelo modo de pensar das ciências exatas? Não tem como negar: Spock (exatas) só faria merda sem Kirk (humanas).