Eu e os livros técnicos: sou exigente?

Após ter escrito meu último post algumas(muitas) pessoas me disseram que sou muito exigente e que se há livros ruins sendo vendidos, isto ocorre por que há quem os compre. São pontos realmente interessantes, e que levantam uma série de questionamentos – ao menos para mim – no mínimo fascinantes.

Primeiro algumas coisas que eu devia ter tornado mais claras no post anterior

De novo sobre a importância da bibliografia

Ouvi algumas vezes a seguinte frase: “realmente, bibliografias são ótimas para que possamos nos aprofundar no assunto”. Creio que não fui claro o suficiente, então direi agora: a bibliografia mostra que o autor realmente estudou.

Recentemente peguei um livro técnico que tinha exatamente quatro referências bibliográficas. Este autor realmente estudou? Solto então um parâmetro de avaliação que nunca me falhou:

A qualidade de um livro técnico é diretamente proporcional ao tamanho de sua bibliografia.

Resumindo: bibliografia não é feature, mas sim requisito fundamental.

O peso da responsabilidade

As pessoas levam muito a sério o que leem nos livros. Não raro consideram como referência imediata o(s) autor(es) daquilo que compram. A razão por trás disto é simples, como bem dizia um antigo professor meu (José Henrique Santos, lá na FAFICH) que parafraseio agora:

A mentira existe por que as pessoas esperam ouvir a verdade.

Se o livro foi publicado, o que o leitor espera? Que ele tenha sido bem editado, que o autor tenha se preparado para realizar o trabalho de transmissão de conhecimento, que tenha sido realizado um bom trabalho de revisão, que a editora tenha bem selecionado o autor que irá publicar. Há uma relação de confiança imediata aqui.

Resumindo, visto que você, como autor, será levado a sério e suas palavras guiarão o leitor em sua vida profissional (podendo gerar grandes prejuízos), se a editora for incompetente em seu trabalho ou o autor um aventureiro, estamos lidando com perigosos irresponsáveis.

(sim, você leu bem: estou te chamando de fanfarrão)

Autor e editora são responsáveis pelo trabalho de merda que podem produzir, e acho tristíssimo o fato de ser uma das poucas pessoas que levantam esta questão aqui, mas talvez eu seja uma pessoa exigente demais…

Sou um sujeito exigente?

Pouca gente lembra hoje, mas minha vida profissional começou literalmente entre livros. Eu era livreiro (vendia livros), depois o primeiro produto comercial da itexto foi um ERP vertical para Livrarias, Editoras, Bibliotecas e Distribuidoras de Livros (Plataforma Livreiro) e, no meio do caminho fiz o curso de Filosofia (pasme, pensando em vender mais livros), cuja parte prática é essencialmente o esforço de pesquisa necessário para que livros possam ser escritos e depois publicados.

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Resumindo: conheço de ponta a ponta o processo que se inicia na pesquisa, evoluí para a escrita, trabalho editorial, comercial e posterior conservação e manuseio do livro que você comprou e guarda em sua prateleira. Este é meu aspecto bibliófilo.

Na outra ponta sou também um empresário que contrata programadores, e que fica horrorizado a cada processo seletivo com a baixíssima qualidade da formação que as novas gerações estão obtendo. Formação esta que vêm não só dos cursos, mas também daquilo que se lê, daquilo que se vê e ouve em eventos.

(tenho um post quase pronto com o seguinte questionamento: como saber quem nos forma?)

Sendo assim, dado que conheço tanto o esforço necessário para se escrever um livro de qualidade (diga-se de passagem, escrevi dois) quanto das consequências de más publicações para o leitor, digo que não sou um leitor exigente, mas sim…

Alguém agindo de forma ética ao não se omitir em relação a algo que sabe trazer problemas imensos para nossa área.

“Há livros ruins por que há quem os compre”

Serei curto e grosso: esta afirmação é covarde e desonesta.

Covarde por que livra da culpa maus autores e editoras e a transfere ao consumidor. Se “esquece” que, tal como disse acima, o leitor ao adquirir um livro espera qualidade e só descobre depois (se tiver sorte) que comprou merda.

Desonesta por que tira das editoras e autores a responsabilidade de formar o leitor, lhe fornecendo as ferramentas necessárias para que possa avaliar o material antes de comprá-lo. Tira-se proveito da confiança do leitor.

Quem afirma este absurdo se esquece (ou omite) algo essencial: leitura é formação, e formação não é um produto cuja qualidade “possa” vir em diferentes níveis. Formação molda mentes, define seu futuro.

(por que não permitimos que um médico irresponsável nos opere mas não gritamos quando nossos filhos tem contato com maus professores e livros?)

A qualidade do livro técnico surge no autor, é validada pela editora e transmitida ao leitor. Este, o elo final da processo, deve ser acostumado não a consumir bobagens, mas sim material de qualidade para que, por sua vez, ao ser bem formado, possa ter o ferramental intelectual para detectar trabalhos ruins, minimizando assim o risco de que sejam publicados.

(Meu medo de um mundo sem editoras é justamente a proliferação de livros muito ruins, o que acabaria por ferir mortalmente a importância do livro técnico em si. Tutoriais e apostilas jamais deveriam substituir o livro.)

E aqui cabe algumas perguntas: se o mercado possibilita publicações ruins, quem ganha com isto no curto, médio e longo prazo? Qual o maior benefício (sempre há pelo menos um) em termos técnicos ignorantes? Por quanto tempo conseguiremos nos manter enquanto incentivamos a ignorância da nossa mão de obra?

Culpar o mercado ou o crítico é omissão

Material ruim ser publicado é um sintoma de algo mais grave: uma má formação geral  assolando nossa área. Não é apenas “ah… tem gente que gosta, por isto é vendido” ou “este cara é muito chato, tem muito livro vagabundo que quebra o galho e bem”.

Se o livro técnico é ruim, não temos uma editora pilantra e um autor picareta (na maior parte das vezes). Temos gente com formação ruim (aonde jamais poderia haver), que realmente acredita estar fazendo algo de qualidade e que valha à pena para seus leitores.

Os leitores, por sua vez, que serão as pessoas formadas por este conteúdo, acidentalmente acabam crendo naqueles que não sabem. Pieter Bruegel ilustrou bem esta situação no século XVI ao pintar a parábola dos cegos.
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PS:

O leitor tem lá sua parcela de culpa ao comprar livros ruins? Creio que dependa de sua formação. Mesmo que tenha lá sua fatia, com certeza é a menor: o aluno para criticar seu mestre precisa primeiro saber o que é bom.


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Comentários

4 respostas para “Eu e os livros técnicos: sou exigente?”

  1. Avatar de Éderson Cássio
    Éderson Cássio

    Matando a pau como sempre! Texto muito bom e com aquele tom de brabeza que a gente adora :)

    Só tenho alguma reserva quanto a ser radical demais com o *tamanho* da bibliografia pelos seguintes fatores:

    1. Pioneirismo – quando se é o primeiro ou um dos primeiros a escrever sobre um tema e ainda não há (muitas) opções de pesquisa.

    2. Qualidade (ou falta de) – o que vale mais: ter estudado (e indicar para o leitor) muitas fontes ruins, ou umas poucas que realmente valem a pena?

    3. Má-fé – o que impede o autor de citar uma porção de clássicos que ele sequer leu?

    Não estou querendo induzir que acho isso ou aquilo, apenas levantando uma questão. Apenas meu critério é mais relaxado neste ponto, dado que a leitura tenha me feito aprender algo, obviamente.

    1. Avatar de Kico (Henrique Lobo Weissmann)
      Kico (Henrique Lobo Weissmann)

      Oi Éderson, obrigado!

      Sobre os pontos relativos à bibliografia. Naturalmente não dá pra generalizar, mas vamos lá.

      Ponto 1 – só seria válido se fosse um pioneirismo absoluto (tipo Adão escrevendo sobre plantas (e mesmo assim ele teria de mencionar Deus na bibliografia)), mesmo assim, dado que o conhecimento sempre se forma a partir de conhecimentos anteriores, isto é na prática impossível.

      Ponto 2 – é uma falácia isto, no caso, a falácia do espantalho, quando você usa um exemplo extremo para tentar invalidar um argumento. Além disto, creio que vale muito à pena indicar ao leitor mesmo que as fontes sejam ruins. Neste caso, inclusive recomendo (algo que não fiz nos meus livros mas farei no próximo) uma bibliografia comentada.

      Ponto 3 – de novo é a questão do espantalho. Neste caso, alguém mais instruído é capaz de saber que a pessoa não leu. Mas mesmo que não tenha lido, no pior caso possível, pelo menos há uma lista de leitura de assuntos (em teoria) relacionados ao livro escrito.

      Vejo a bibliografia como uma espécie de “certificado”. Mostra que o autor consultou algo antes. Se a fonte é confiável ou não, é outra questão, mas o importante é que esta seja exposta para que ao menos possa ser validada sua qualidade.

  2. Avatar de Matheus Moreira

    Textos interessantes, Kico. Recentemente comecei a escrever para o blog da Avenue Code (blog.avenuecode.com) e vi o quanto é difícil ser preciso, correto no texto técnico. Uma estratégia que usei foi linkar ao longo dos textos as referências que li. Acho que teve um benefício triplo: me senti mais seguro ao escrever, enriqueci o texto com as fontes e dei aos leitores a oportunidade de verificar e criticar com mais qualidade o resultado do meu trabalho.

    Como você tem (muito) mais experiência em escrever do que eu, se possível gostaria muito de contar com a sua crítica.

    Grande abraço.

    1. Avatar de Kico (Henrique Lobo Weissmann)
      Kico (Henrique Lobo Weissmann)

      Oi Matheus, obrigado e pode contar com ela!

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