Maquiavel e os palpiteiros da TI

Estou relendo “O Príncipe” de Maquiavel: o que é realmente bacana neste texto é como se aplica a práticamente todas as esferas do cotídiano. Claro: eu precisava trazer algo para a minha área: desenvolvimento de software. Vou tratar  do capítulo XXIII, chamado “De como se devem evitar os aduladores”. Troque o termo adulador por palpiteiro e a transição para o nosso dia-a-dia se torna quase auto evidente. Este é um post voltado para desenvolvedores, mas a mensagem que espero transmitir é muito mais importante para aqueles que contratam nossos serviços.

Do que trata “O Príncipe” e como se aplica a nós

Neste texto, o objetivo final de Maquiavel – além de dar uma bela puxada de saco no Lorenzo de Medici – é expor quais são os tipos de principados e como seus governantes (os príncipes) devem proceder de modo a mantê-los. Há muito preconceito relacionado a este livro graças a expressão “maquiavélico” que costuma-se aplicar a qualquer indivíduo tido como ardiloso, calculista, cruel, etc. Nah! Este preconceito é apenas uma visão fora de contexto, e eu tenho uma visão bastante pessoal deste trabalho.

Na minha opinião, o conceito de “principado” ou “reino” pode ser visto também como o meu domínio pessoal sobre alguma coisa, seja esta minha vida, relacionamentos ou trabalho. E as mesmas regras que Maquiavel nos ensina aplicar para manter e aprimorar estes principados também podem ser aplicados neste diferente contexto. O que torna uma obra clássica é a sua universalidade. Se “O Príncipe” fosse útil apenas para a manutenção de reinados dos séculos XV-XVI, hoje este livro seria apenas uma curiosidade histórica, o que de fato, não é.

As ações tidas como violentas aos dias de hoje, como por exemplo aniquilação do principe anterior e sua estirpe ou destruição de principados também deve ser trazida para este novo contexto. Ao invés de destruição e assassinatos, substitua-os por reconstrução e substituição.

Sim, eu sou “maquiavélico”.

Mas e os palpiteiros?

Quando se contrata  serviços de desenvolvimento de software – ou qualquer outro tipo  –  é de extrema importância que o cliente consulte outras fontes além da empresa/profissional(is) com o qual está tratando. É um passo fundamental para que se evite cair no golpe do especialista, que infelizmente é bastante comum, principalmente na nossa área. O problema é: quais são estas fontes.

Maquiavélicamente falando, o príncipe é o cliente, e seu reino o projeto que está patrocinando. Citando Maquiavel, iremos falar de “um erro do qual os Príncipes só com dificuldade se defendem, se não são muito prudentes ou não fazem boa escolha. Refiro-me aos aduladores de que as cortes estão cheias; porque os homens se comprazem tanto nas coisas próprias e de tal modo se enganam nestas que é com dificuldade que se defendem dessa peste.

O termo corte também deve ser transportado para o nosso contexto. Por corte entenda as pessoas com as quais o cliente se relaciona. É na corte que o palpiteiro (o adulador na linguagem de Maquiavel) se esconde. Ele possui vários nomes, sendo os mais comuns vizinho, amigo, sobrinho, colega, enteado... E todos possuem algo em comum: quase nenhuma ou nenhuma experiência ou conhecimento da área em que estão opinando.

É fácil perceber a ação de um palpiteiro. Normalmente resultam em frases com sintaxe similar à exposta abaixo:

Um [colega/amigo/amigo de um amigo/sobrinho/qualquer nome que identifica um palpiteiro] me disse que [algo absurdo e que irá tornar a sua vida profissional um inferno caso aplicada e causará prejuízos ao cliente sem que ele se dê conta] e eu acho que a gente devia fazer assim.

Muitas vezes, ao consultar um palpiteiro, este por ser também um puxa-saco simplesmente não diz a verdade com medo de chatear alguém. Neste caso o cliente pode evitar o problema de uma forma simples. Usando as palavras de Maquiavel: você deve “fazer com que os homens entendam não ste fazer ofensa por dizer a verdade”. O problema é que o palpiteiro nunca é confiável.

De onde vêm o poder do palpiteiro e o que nós, desenvolvedores, podemos fazer

Seu cliente não é um imbecil, tenha isto em mente. Muitas vezes, ele simplesmente não conhece o contratado o suficiente para que possa ter confiança total. Nestes casos, nada mais natural que busque opiniões das pessoas que conhece a mais tempo.

Mas nem tudo está perdido quando o palpiteiro entra em cena. Há algumas coisas que você pode fazer:

  • Apresentar um bom currículo logo no momento em que inicia-se seu contato com o cliente.
  • Mostrar argumentos e provas que anulem as barbaridades ditas por esta peste chamada palpiteiro. Resumindo: provar que o “vizinho” do seu cliente está errado.

Se mesmo assim o cliente teime que o seu palpiteiro está correto, peça-lhe que assine um contrato se responsabilizando por quaisquer danos causados pela sua cegueira. Ele com certeza assinará, afinal de contas, o que pode dar errado ao ouvir um “bom conselho” do seu vizinho/colega de trabalho/sobrinho, não é mesmo? :)

Como o cliente pode evitar esta peste

Bernard Madoff

Quem fica em uma situação realmente complicada nesta situação é o cliente. Afinal de contas, sempre há o medo de se estar sendo enganado pelo contratado. Como saber que não está caindo no golpe de um “Madoff“, não é mesmo?

Neste caso, Maquiavel nos diz: o príncipe deve “conduzir-se (…) escolhendo em seu Estado homens sábios, e só a estes deve dar o direito de falar-lhe a verdade a respeito, porém, apenas das coisas que ele lhes perguntar. Por homens sábios, entenda o contratado e outras pessoas que tenham conhecimento comprovado no domínio em questão. No caso do software, são aqueles que conhecem a lógica de negócio do que está sendo implementado OU tenham o conhecimento técnico mínimo para que não digam bobagem e causem tragédias.

Repare em outro detalhe: você deve ser específico, e exigir como resposta apenas aquilo que perguntou. Resumindo: não permita aos seus “sábios” divagar demais. Mantenha o foco.

E então, com base apenas neste conhecimento, ai sim a sua relação com o desenvolvedor poderá se dar de forma produtiva, valorosa e, ainda mais importante, confiável. Confiança é tudo no nosso negócio.

Palpiteiros em ação

Finalizo este post expondo um caso real. Aconteceu em uma empresa que nutro muita estima.  Treze anos atrás  esta iniciou o desenvolvimento dos seus sistemas internos com o objetivo de aumentar a produtividade. É uma companhia composta por pessoas de extrema genialidade e, exatamente por se tratarem de pessoas muito inteligentes (são realmente brilhantes), é o melhor exemplo que conheço dos prejuízos que um palpiteiro pode causar.

Nos primórdios, alguns palpiteiros vieram com o seguinte argumento aos donos da empresa:

O melhor formato para armazenamento de dados é o Microsoft Access 97: um banco de dados confiável e universal. Todo mundo tem o Access instalado porque vêm com o Office! Sendo assim, quando precisarem enviar informações aos seus clientes, basta enviar o arquivo MDB pra eles. Nada pode dar errado! Vocês deviam pedir isto aos seus desenvolvedores.

Apenas por um momento, procure ignorar o que você sabe sobre o Access. Para um leigo em desenvolvimento de software (como 99,999% da população mundial), este é um argumento que faz muito sentido. O que poderia dar errado em usar este formato? E ainda tem um plus a mais: seus clientes poderiam fazer consultas avançadas nos dados que você enviou a eles e talvez até gerar novos relatórios, certo? Repito a pergunta: o que poderia dar errado?

Em 1997, nada. Realmente, a empresa era muito menor, e de fato o Access vinha com o Office por padrão. Além disto, a esmagadora maioria dos livros de programação da época nas linguagens mais populares (VB e Delphi) ensinavam a programar em banco de dados usando o Access (malditos autores!!!). Resumindo: o mundo era mais simples, e querendo ou não, naquele momento, o Access realmente supriria as necessidades, por mais absurdo que possa parecer o que estou dizendo.

O problema é que a empresa cresceu, o tempo passou, a quantidade de dados acumulada aumentou de forma exponencial e, somente hoje, 13 anos depois é que estão começando a conseguir migrar parte dos seus dados para outro SGBD. Aquele pitaco inicial gerou um prejuízo na ordem de milhões de reais.

E isto aconteceu com pessoas geniais. Será que você ou eu, meros mortais, estamos livre dos perigos de um palpiteiro?

Concluindo

No final das contas: é uma questão de prudência, e eu não consigo expressar esta conclusão melhor que Maquiavel:

“(…) os bons conselhos , de onde quer que provenham, nascem da prudência do Príncipe, ao passo que a prudência do Príncipe não depende dos bons conselhos”.

PS: eu odeio o Access :)

19 comentários em “Maquiavel e os palpiteiros da TI”

  1. Salve, Kico!

    Interessante paralelo entre a obra de Maquiavel e a vida real dos desenvolvedores de software do século XXI. Para a infelicidade de todo o gênero humano, ouso dizer que o problema dos “palpiteiros” está disseminado por toda parte. Eu já trabalhei na indústria de couros e, como sabe, sou advogado também, e em ambas as situações, presenciei a mesma sequência de fatos descrita por você.

    Isso tanto é mais verdadeiro quanto maior a distância entre o conhecimento formal e o empírico que detenha o palpiteiro. Quantas vezes nós, que buscamos formação oficial e continuada, não fomos desbancados pela opinião daquele gerente que está no cargo há 30 anos, mal completou o ensino médio e faz as mesmas coisas, da mesma forma, desde que entrou na empresa?

    Parabéns, e um abraço,

    1. Opa goncin, realmente: concordo com você. Enquanto escrevia o post, me lembrava o tempo inteiro de situações nas quais vi alguns amigos entrarem justamente por causa de palpiteiros, e isto em outras áreas – mais específicamente, direito e medicina (olha o perigo!).

      Quase que escrevi de forma mais universal, porém, como o que conheço MESMO é TI, achei que seria mais seguro (e menos “palpitístico” ficar na minha zona de conforto mesmo).

      Valeu!

  2. Ah, sensacional!!! Trazer parte de “O Principe” para nossa realidade de TI foi uma boa sacada. Eu já li a obra (apesar de há muitos anos atrás) e também a considerei universal. Me deu vontade de ler novamente. Grande abraço!

    1. Opa Vedovelli, fico muito feliz que tenha gostado. Valeu!

      Aliás, vale a pena d+ reler, pois a cada releitura o livro se mostra como novo. É realmente fantástico.

  3. Primeiramente, meus parabéns pelo texto. Muito interessante trazer a idéia de “O Principe” para a nossa área. Eu arrisco dizer que essa sua idéia pode se extender para QUALQUER área. Sempre existem os especialistas, sempre existem os malandros, sempre existem os puxa-saco. E sabe do que? Nem nós, pessoas esclarecidas e inteligentes, podemos fugir dos “aduladores” pois, por mais “gênios” que possamos ser considerados, não temos o conhecimento absoluto e podemos da mesma maneira ser enganados. Quem tiver preguiça de ler o seu texto, recomendo que leia a conclusão, pois ali está bem resumida a idéia: Prudência! Vivendo o dia-a-dia profissional com prudência, é muito difícil que se deixe lubridiar por profissionais medíocres e pessoas sem conhecimento que possam te levar a tomar decisões erradas.

  4. Esse post retrata muito bem a maioria dos casos da área de TI. Porém, como o Carlson mencionou, esse fato também ocorre na maioria das profissões.

    Parabéns pelo post, Kico! Traga mais assuntos relacionados ao dia-a-dia dos profissionais.

    1. Sim, quando eu o estava escrevendo, me lembrei de varios casos relatados por amigos em áreas diversas, e sempre com as mesmas reclamações. Mas ai quis me ater à área que de fato conheço: a nossa. :D

      Aliás, é isto o que torna um clássico clássico. A universalidade. Cada vez que leio “O Príncipe” fico mais de cara com o fato de que este texto se aplica a práticamente todas as esferas da vida, e que muitas vezes chega a ser assustador/irritante de tão direto.

      Valeu peloa poio!

  5. Esses tempo li um artigo que tb falava sobre palpiteiros, mas como não existe um termo bom para palpiteiro em ingles, o autor chamou o problema de “Good buddy syndrome”. http://blogs.techrepublic.com.com/10things/?p=1807 (item 7).

    Ele sugere confrontação. Mas eu acho que isso raramente é possivel. O que geralmente acaba acontecendo é que o palpiteiro acaba sabotando o projeto, as vezes sem vc nem saber que ele existe.

    1. Muito bom este artigo Ciczan! Adorei a tradução de “palpiteiro” – “good buddy”.

      Aliás, a definição é muito próxima da que exponho: “Usually, these good buddies have no clue what they’re talking about”

      Valeu pela dica!

  6. Wow! Isso sim é levar leitura a serio.

    Confesso que quando li Maquiavel era muito menino e pouco entendi, e não consegui nem perceber quando ele estava sendo ironico ou não, e me perdia bastante nas referencias historicas.

    1. Oi Paulo! Que bom que gostou!

      Recomendo dar uma relida no Maquiavel com mais carinho. É impressionante como a cada releitura o livro se renova e, ainda mais: como práticamente tudo se aplica na vida prática.

  7. Eu tentei diversas vezes comentar nesse artigo. Mas ele representa tão bem o que penso sobre o assunto, que não tenho nada a acrescentar! Muito bom.

  8. Discordo do que foi postado acima. Sou desenvolvedor de sistemas há mais de 15 anos, programando em VB e utilizando banco de dados ACCESS e posso afirmar que o BD do ACCESS eh uma ótima opção para uso em sistemas. É estável e não dá pau fácil como o BD do delphi.O que o autor do texto acima descreve, faz parte do processo da evolução e modernização das ferramentas utilizadas no processamento de dados. O que ele descreve seria do tipo: Hoje eu ando de Ferrari e gastei mais de 500.000,00 para comprá-la, mas há 10 anos atrás eu andava de Fusca e só comprei o Fusca porque o vendedor ao me vender, disse que seria o carro perfeito para mim… Ou seja, vou culpar o vendedor por ter me vendido o Fusca há 10 anos atrás, sabendo que, mais cedo ou mais tarde eu iria troca-lo por um carro melhor ??????

    Nada mais natural !!!!
    A isso eu dou o nome de EVOLUÇÃO!

    1. Roger, se sua aplicação for monousuário, desktop e com requisitos de acesso mínimos, talvez eu até concorde com você técnicamente.

      O exemplo que você cita também não é bom. Se o Fusca era um carro excelente pra mim, e 10 anos depois resolvo comprar uma Ferrari, acabei me dando mal, porque gastei 500.000 a mais em um carro que supriria as mesmas necessidades que o meu fusca. Neste caso, não seria evolução, mas involução, pois fiquei 500.000 mais pobre. :)

      Mas o foco do post não é se o Access é bom ou ruim, mas sim os problemas que o mal aconselhamento pode causar para os consumidores de serviços de TI.

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