O Fahrenheit 451 da TI: questionando pesquisas salariais

fahrenheit451Recentemente topei com uma pesquisa salarial na área de desenvolvimento de software que me fez lembrar de um filme do François Truffault chamado Fahrenheit 451 (baseado no livro homônimo de Ray Bradbury). A pergunta que me faço é a seguinte: será que não estamos simplificando demais o humano?

O que me chamou a atenção foi o critério principal da pesquisa que cito abaixo:

Diferencial:   a nossa pesquisa leva em conta não somente o cargo ou função,
mas principalmente a tecnologia que o profissional conhece.

No livro de Ray Bradbury, em um futuro indeterminado os livros são proibidos e os bombeiros desempenham o papel de proteger a humanidade da “perigosa”  palavra escrita queimando livros (as pessoas vivem em casas “a prova de fogo” e não se lembram da época em que bombeiros combatiam incêndios). Para salvar a cultura existem espalhados pelo mundo seres subversivos conhecidos como “pessoas livro” (book people) que basicamente adotam o nome de um livro de sua preferência, o decoram e em seguida queimam para evitar que sejam pegos pela polícia. E assim vão transmitindo esta cultura verbalmente de pai para filho com a esperança de um dia esta lei senil tornar-se inválida e os livros voltarem a ser impressos.

A cena que me veio à cabeça quando topei com a pesquisa foi a que exponho abaixo em que o protagonista, Guy Montag (ex-bombeiro) é apresentado à “República de Platão”, “Orgulho e Preconceito de Jane Austin”, “O Príncipe de Maquiavel” e diversas outras pessoas-livro.

(link para o vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=0sHcFlFmJ60)

Me vi no papel de Montag conhecendo o “Java Jr”, “Perl Sr”, “Visual Basic Pleno”, “Clipper Sr”, “Senhora Ruby” e muitos outros naquele mesmo bosque. Todos maravilhosos especialistas incapazes de conhecer qualquer coisa que esteja fora da sua área de especialização. Me pergunto como seria o filho da “Madame C” com “Sr. Ruby”? Seria este um mestiço simpático?

Neste delírio pude perceber também que há castas bastante rígidas e muitas vezes cruéis dado que aparentemente o especialista é especialista em apenas um ramo: pobre do experiente Sr. Clipper, ganha R$ 2811,00 enquanto o serelepe  Java Júnior começando sua vida já ganha de cara R$ 2529,00. Promissor este garoto!

Mas não fique triste Sr. Clipper, uma vez que você tenha tanta experiência acumulada, pode passar a ganhar mais que o Mr. Java: basta mudar de área, pois tal como observado pela pesquisa, normalmente uma carreira possuí o seguinte desenvolvimento que cito abaixo:

De uma forma geral, a carreira profissional em determinada função segue a seguinte sequência:

estagiário : trainee : auxiliar/assistente : tecnico/analista : supervisor/coordenador : gerente

Basta que você ao se tornar bom na coisa, como excelente técnico, passe a ser algo completamente diferente e novo para você: supervisor/coordenador e quem sabe gerente! Foda-se que seja algo totalmente distinto e diferente daquilo que domina!

E aí eu acordei

BURN Programador X, BURN!
BURN Programador X, BURN!

Acordei suando frio e para meu espanto percebi que era verdade. É novamente a questão do desperdício humano que mencionei no post anterior. Realmente observo isto em entrevistas de emprego nas quais sou caracterizado como programador (Java, Groovy, Grails, qualquer coisa).

(curiosamente só vejo o nome “arquiteto” na prática servindo para denotar programadores muito experientes pelos relatos que recebo)

Será que este tipo de classificação não é penosa para o empregador também? Digo: a partir do momento em que contrato alguém pensando ser um especialista em X, será que não estou acidentalmente me cegando para as outras possibilidades do indivíduo?

E quando vejo a progressão profissional apresentada, sabem o que me choca? Todo mundo diz que na nossa área é uma luta para obter boa mão de obra técnica. Se é tão difícil assim, por que quando o sujeito fica bom nós o obrigamos a ir para uma área completamente diferente (gerência, coordenação, humanas) daquela na qual finalmente passou a dominar? Será que não seria mais interessante garantir o crescimento técnico do indivíduo ao invés de simplesmente zerar sua experiência?

Alguns poderiam dizer: “ah, mas o cara tem de se atualizar”. É verdade, não há dúvidas sobre isto. No entanto o que observo com esta classificação do mercado é que ela novamente ignora o fato de que pessoas podem aprender.

O que proponho então

A mentalidade desta pesquisa já está cristalizada na cabeça de diversos gestores. Cabe a nós dar o grito. Que tal se você parasse de se apresentar como “Programador Java”, e sim como “Programador”, “Desenvolvedor” ou qualquer nome da moda que surja no futuro? Afinal de contas você consegue aprender outras linguagens e plataformas, certo? Se não meu amigo, busque a felicidade mudando de área.

Outra: valorize sua experiência passada. Você faz mais do que simplesmente programar na linguagem X ou ambiente Y, certo? Que tal dizer que também adoraria experimentar coisas diferentes ahn? E ainda mais importante: que tal começar a pensar nos critérios que este tipo de pesquisa apresenta ao invés de simplesmente aceitar de cara?

E ainda mais importante: evite o determinismo linguístico. Quando você se caracteriza como programador X, seu mundo passa a ser visto apenas pelas lentes de X. Quatro anos atrás escrevi sobre isto neste blog. Programação poliglota não é modinha mas questão de sobrevivência. Sempre foi mesmo antes de ter este nome hipster.

Sinto muito, mas acredito que precisamos questionar melhor estas pesquisas salariais ao invés de aceitá-las assim tão rápido.

PS: dúvida maldosa

Sou muito bom em pelo menos umas cinco linguagens. Será que meu salário deveria ser a soma dos plenos de cada uma delas?


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Comentários

4 respostas para “O Fahrenheit 451 da TI: questionando pesquisas salariais”

  1. Avatar de Sávio Freitas
    Sávio Freitas

    Grande Kiko. Mais uma vez direto na veia. Este post em paralelo ao “processo imbecilizante de desenvolvimento” chega a dar uma depressão (por ser tão real). Cada vez o desenvolvedor é depreciado (para si) e ao mesmo tempo vendido a preço de ouro (para o cliente). Só faltou realçar a transformação do profissional em “recurso”. Este sim virou objeto cada vez menos pensante. O pensamento é esse mesmo: “se quiser crescer, tem q ser como qualquer coisa – exceto como programador”.

    Muito bom.

    1. Avatar de Kico (Henrique Lobo Weissmann)
      Kico (Henrique Lobo Weissmann)

      Oi Sávio, que bom que gostou, valeu!

  2. Avatar de Carlos

    Excelente post, Kico!

    Acredito que essas pesquisas salariais sejam uma distorção dos reais requisitos profissionais que uma empresa busca em um candidato. Não podemos se esquecer das empresas que servem de Head Hunters para empresas maiores e ganham por recrutamento e, posteriormente, admissão do candidado perfeito. Aí, como reflexo desse trabalho “mecânico”, o que vemos em sites de ofertas de emprego são esses requisitos bem específicos, criados para eliminar candidatos “fora do perfil”, segundo eles mesmos.

    O mais curioso é que a real necessidade das empresas não serve como critério de eliminação nessas pesquisas de recrutamento, como, por exemplo: Boa redação, boa dicção, capacidade de conduzir uma apresentação perante um cliente… Hoje em dia é essencial q

  3. Avatar de Carlos

    (prosseguindo…)

    … Hoje em dia é essencial que o profissional de T.I esteja alinhado com a área de Negócios da empresa e tome atitudes como se fosse sócio da mesma. Para tal, é preciso muito mais do que apenas dominar uma tecnologia específica – quanto mais nos dias atuais, onde o que é relevante hoje, passa a se tornar irrelevante amanhã (em termos de tecnologia, claro).
    Também é interessante notar que isso o que você cita no artigo é uma clara influência da mentalidade econômica do passado (provavelmente porque a maioria dos CEOs e gerentes das grandes corporações estão na casa dos 40-50 anos de idade e são fortemente influenciados por esse modelo econômico. Não é à toa que ainda temos gente na faculdade estudando Taylor e Fayol em pleno século XXI!!!). No entanto, vemos que essa mentalidade está mudando aos poucos com o recente boom das Startups, da adoção do Home Office, do Coworking… Tem uma nova geração surgindo por aí e com uma mentalidade mais “generalista” do que “especialista”, provando que o lado humano do profissional é muito mais importante para a empresa do que a bagagem intelectual que ele adquiriu até ali. Afinal, de que adianta ser muito bom em algo se a capacidade para aprender coisas novas desse indivíduo é nula? Como ele se adapta às mudanças? Como é seu espírito colaborativo? Essa é a real questão.
    P.S.: Respondendo a sua pergunta… Em teoria, sim. Mas as empresas se protegem com dois argumentos: 1 – Não precisamos do seu conhecimento em outras linguagens, já que trabalhamos aqui só com uma. 2 – Se vc tem tanto conhecimento assim, está na hora de se tornar coordenador ou gerente de projetos (mesmo que você tenha dificuldades até mesmo em dar “bom dia” para sua equipe…)

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