Recentemente ouvi a pérola que dá o título deste post de um colega que, após sair de uma demonstração de produtos Microsoft, ficou fascinado com a modularidade do novo sistema operacional, cuja interface gráfica agora pode ou não ser instalada. Por trás desta ingenuidade, no entanto, esconde-se uma realidade assustadora.
(é um bom exemplo de pateticidade, ou seja, a aparência comica que disfarça uma realidade infeliz)
Minha resposta foi óbvia: “hmm… entendi. Então você vai abandonar toda a liberdade que o software livre te dá em troca de algo que imita o que você já possui e ainda pagar para obter esta perda! Você é um ‘gênio’! ” A pessoa ficou meio atordoada com a resposta (provavelmente me considerou um xiita ou simplesmente um esnobe), o que é normal quando vemos o objeto de nossa ilusão desfazer-se diante de nossos olhos.
Mais uma vez, o problema do determinismo linguistico se aplica. Como a maior parte de nós em nossa formação basicamente só vimos produtos Microsoft, tudo aquilo que é diferente desta nos parece ameaçador. Como de uns anos pra cá a baixa qualidade dos produtos desta se mostrou evidente (o crescimento do Linux e da Apple expõe isto de forma gritante), muitos se sentem aliviados ao ver que os produtos da Microsoft estão “iguaizinhos os softwares livres”.
O ponto óbvio é: tudo isto que hoje é visto como “fabuloso”, “inovador” e “criativo” já existe há décadas FORA da plataforma Microsoft. Não se trata de uma novidade em si, mas sim de uma novidade nos produtos Microsoft. Como a maior parte dos profissionais da área só conhecem produtos desta empresa, acaba-se por criar a ilusão de que, de fato, são novidades absolutas.
(mais uma vez o mito da caverna se apresenta)
Observe que normalmente só vemos dois polos: Microsoft e Linux. Muitos vão para o Linux simplesmente por causa do custo. Linux é visto como algo cuja única vantagem consiste no preço. O fato de possuir uma qualidade superior nem é levado em consideração nestes casos. O importante é apenas reduzir o custo. E com isto se esquece o que de fato vêm a ser o software livre.
Só pra lembrar, um software é considerado livre se fornece quatro liberdades ao usuário:
- Liberdade de usar o software como, onde e quando quiser
- Liberdade de acesso ao código fonte do software, assim como de alterá-lo.
- Liberdade de distribuir o software
- Liberdade de distribuir a sua versão modificada do software
Uma vez compreendidas estas liberdades (o que farei aqui), fica nítido que voltar a usar software proprietário é no mínimo retrocesso.
Liberdade de uso do software: este é a liberdade mais óbvia. O usuário deve poder usar o software onde e como e quando quiser. Parece estranho pensar nisto em um primeiro momento. Afinal de contas, quando compro por exemplo uma licença do Office, eu o uso como, quando e onde quiser, certo? Errado. Leia sua licença.
LIberdade de acesso ao código fonte, assim como de alterá-lo. A primeira vista, esta liberdade pode até parecer descartável. Afinal de contas, somente programadores irão compreender o que significa aquele “monte de texto maluco”, correto? Errado. Possuir acesso ao código fonte implica em saber o que de fato o software faz, como funciona e se está de fato trabalhando corretamente. Você pode até mesmo não entender nada de programação. Mas o fato de existirem pessoas que saibam, e que auditam este código continuamente fornece uma segurança muito maior ao usuário.
E por que alterá-lo? Simples: se o software faz quase o que você precisa, ele não faz o que você precisa. Neste caso, o que você faz? Espera indefinidamente por uma versão que faça o que você precisa?
Liberdade de distribuir o software: os usuários de software proprietário podem até não perceber, mas encontram-se divididos. Divididos porque não podem compartilhar as ferramentas que utilizam. Se um usuário pode redistribuir o software que recebeu, ele e aqueles que o receberem na realidade se unem. Todos irão falar o mesmo idioma.
Liberdade de distribuir versões modificadas do software: se sua modificação solucionou seu problema ou resolveu um defeito do software em questão, nada mais natural do que passá-la pra frente. É neste ponto que o software livre apresenta sua qualidade superior.
Um software proprietário ao qual você possua acesso ao código fonte não lhe permite alterar seu código. E mesmo que permita, não lhe permite distribuir suas modificações. Afinal de contas, é proprietário. Se você soluciona um bug neste tipo de software, o máximo que poderá fazer consiste em enviar sua sugestão de reparo a seu fabricante e este, talvez, a incorpore em uma nova versão. No caso do software livre, o reparo é imediato. Encontrou um bug? Envie-o para a comunidade. Esta não aceitou sua solução? Sem problema: publique a sua versão modificada em seu site.
Outra vantagem: se você possui a liberdade de distribuir versões modificadas do software, você é um fornecedor também. Consequentemente, a partir desta liberdade, torna-se impossível que o software em questão possua um único fornecedor. É o fim do vendor lock in!
Após entender o porquê das quatro liberdades, fica nítido que voltar ao modelo proprietário é retrocesso (retrocesso é minha maneira educada de dizer burrice). Infelizmente, a maior parte dos “profissionais” de nossa área que usam software livre sequer leram alguma vez a GPL ou qualquer licença. Software livre para estas pessoas equivale a software gratuito. E gratuito é diferente de livre. E por ignorância, veremos diversos casos de retrocesso rolando por ai.
Não se trata aqui de benevolência ou trabalho comunitário. Longe disto! Trata-se de um modelo justo visando o benefício do usuário (que é quem realmente interessa no final das contas) e, ao mesmo tempo, evita que o desenvolvimento da tecnologia seja definido por um número pequeno de fornecedores. Há um interesse economico FORTE por trás do software livre. Convenhamos: o modelo proprietário já expos que não aceita a proliferação de concorrentes (atualmente os fabricantes de software de peso consistem apenas em Microsoft, Apple, Adobe, Sun, Symantec e Oracle. Antes do predomínio da Microsoft, no entanto, haviam BEM mais).
Aliás, a justificativa que ouvi da mesma pessoa foi: “mas a integração do Windows com os produtos Microsoft já vale a pena”. É… vale “muito” a pena cair DE NOVO no mesmo golpe do fornecedor único “geninho”…
PS: outro bom argumento que escuto: “produtos proprietários são mais fáceis de usar”. Cara, não são. Na realidade, são tão fáceis de usar quanto os livres. A diferença é que como você só OS conhece, eles na realidade estão ocultando sua incompetência lhe fornecendo a ilusão de poder.
Aqui posso fazer referência ao mesmo determinismo usado nas linguagens de programação, já vi muitas vezes pessoas tentando usar o OpenOffice como se fosse o MS-Office e obviamente falhando, pois não estava usando o MS Word e sim o Writer, ou pessoas que nunca usaram o Linux dizendo que o mesmo é dificil.
Parabéns pelos posts.
Em analogia, poderiamos comparar ao preso que, em cárcere por vários anos adapta-se a vida que leva na prisão como um todo, seu mundo. Ao deixar a cadeia, este vê-se perdido em um mundo desconhecido do qual ele não faz parte e acaba por fazer algo que o leve de volta ao mundo que ele domina, conhece, ou seja, a prisão. Chama-se este processo de institualização.
Velhos hábitos, bons ou ruins, tendem a permear.
Yeap, exatamene como o mito da caverna do Platão. Já até escrevi sobre isto aqui. https://devkico.itexto.com.br/?p=273